Capela da Barra mistura fé e história em
Balneário Camboriú
Igrejinha é palco de lendas irresistíveis e
de acontecimentos que marcaram a região
A igrejinha está entre as mais antigas da Santa & Bela
Marcada pelo tempo, a pequena construção é lar de lendas e segredos. Localizada no bairro da Barra, o mais antigo de Balneário Camboriú, a capela de Santo Amaro, que já teve o status de matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, assistiu a cidade nascer e crescer, de olhos voltados para o rio Camboriú. As histórias passadas de pai pra filho contam que foi um lugar marcado pelo sofrimento dos escravos. Hoje restaurada, a igrejinha, que tá entre as mais antigas da Santa & Bela, conserva um ar de mistério e é um convite a um passeio pela história.
Nem mesmo os historiadores conseguem definir a data exata em que a igreja começou a ser construída. Ao que tudo indica, a planta da obra teria chegado a estas terras, conhecidas como Arraial do Bom Sucesso, graças à facilidade que os navegadores tinham em atracar seus barcos, no início do século XIX. Mas a empreitada só teria saído do papel no ano de 1849, pelas mãos dos escravos. “Tem muitas especulações, mas não se sabe determinar o tempo certo”, diz a especialista em história da arte e restauradora Lílian Martins, que participou do processo de restauração da igrejinha.
Como a capela é muito parecida com a de Nossa Senhora das Graças, em Olinda (PE), acredita-se que foram os jesuítas que trouxeram o projeto pra estas terras. “Tem uma igreja muito parecida no Ribeirão da Ilha, em Florianópolis, que foi a primeira do estado. Esta teria sido a segunda, mas infelizmente não temos como comprovar”, comenta Lílian.
A confusão com as datas rola porque muitos documentos antigos se perderam com o tempo. O mais provável é que tenham ficado com alguma família, ou então tenham sido destruídos em negociações de terras que nem sempre seguiam o que mandava a lei. “As igrejas costumavam ter terras ao redor que eram negociadas, nem sempre de maneira legal. Acabavam extraviando documentos importantes para encobrir”, diz a restauradora.
A capela nasceu pra ser grande. Os fundos da construção indicam que ela deveria ter ficado muito maior do que é. “O plano era de uma igreja matriz, mas com o tempo a comunidade foi crescendo para o outro lado, onde hoje é o centro de Camboriú, e a matriz acabou sendo construída lá”, conta Lílian.
Com a mudança de planos, as obras da igrejinha ficaram paradas por meio século. Prova disso são as paredes desiguais. Ao contrário da maior parte das construções religiosas, que preza pela simetria, na capela de Santo Amaro as janelas do lado direito e esquerdo não seguem a mesma linha. O mais provável é que uma das paredes tenha sido erguida 50 anos antes da outra.
Depois de finalmente pronta, a matriz, que acabou virando capela, precisava de seus padroeiros. Uma imagem barroca de Nossa Senhora do Bom Sucesso, que teria sido dada ao arraial pela família real, ganhou o posto de honra. Mas quem deu nome à construção, no fim das contas, foi uma imagem de Santo Amaro, que guardava a capelinha do antigo cemitério.
Os dois dividem espaço com um Jesus Cristo feito à imagem e semelhança dos colonizadores do litoral. “O Cristo tem um rosto que segue a arte italiana, mas suas pernas são curtinhas, como é característica dos açorianos”, revela Lílian.
O sino rachado
Outro símbolo da capela é o sino rachado, que hoje repousa silencioso numa redoma de vidro. Reza a lenda que a rachadura teria sido provocada pelos escravos, por conta da abolição da escravatura. A história, que atravessa gerações, diz que assim que ficaram sabendo que eram finalmente homens livres, os escravos badalaram o sino dia e noite, com tanta força, que o pesado bronze rachou.
Lílian diz que é bem pouco provável que isso tenha rolado de verdade. “Aquele tipo de fissura é muito comum quando o sino cai por deterioração da corda. O mais provável é que tenha sido isso o que aconteceu. A data também é difícil de precisar, porque a notícia da abolição da escravatura pode ter levado alguns anos pra chegar até aqui”, diz a restauradora.
Lendas alimentam o imaginário do povão
Várias lendas envolvem a capela de Santo Amaro
A tradição do bairro da Barra é povoada de histórias incríveis, daquelas de deixar a criançada de boca aberta. Foi assim, de geração em geração, que as lendas que envolvem a capelinha de Santo Amaro atravessaram os séculos. Uma das mais conhecidas é a história do escravo Inácio, que teria ganhado de presente o primeiro milagre dos padroeiros da igreja.
Reza a lenda que Inácio trampava na lavoura de café, mas como já tinha uma certa idade e andava doente, sempre que podia escapulia dos zóios dos patrões pra ir à capela e rezava pra ser libertado. Tanto rezou , que num belo dia o seu senhor convenceu-se de que o coitado já não podia mais trabalhar e lhe deu a alforria – a liberdade.
Já como homem livre, Inácio pediu aos santos de devoção que lhe curassem de sua misteriosa doença. Ele prometeu que se a graça fosse alcançada, dedicaria o resto da vida aos cuidados com a igreja.
O ex-escravo se curou com as bênçãos de Santo Amaro e de Nossa Senhora do Bom Sucesso, e a partir daí passou a viver dentro da capela. Ele mantinha a igrejinha limpa e, pra sobreviver, fabricava velas nos buracos das rochas que foram usadas pra erguer as paredes, e depois as vendia na comunidade. Passou seus dias assim, livre e feliz, até morrer.
A história do escravo teria sido contada por um padre cheio de criatividade, que rezava missas na capelinha e queria atrair mais fiéis. “Foi pela década de 60 que a história se espalhou”, diz a restauradora Lílian. Se a lorota funcionou, não se sabe. Mas o fato é que ficou marcada no imaginário popular.
Outro causo contado pelos antigos só foi desfeito recentemente. Dizem que as paredes da igrejinha foram construídas usando restos de moluscos e conchas, pedras e óleo de baleia. Com a restauração, descobriu-se que o óleo das gigantes do mar não passou nem perto da obra. “Isso era comum em locais de armação, como na Penha. Mas era um material muito caro, muito longe da realidade simples da comunidade que vivia no Arraial do Bom Sucesso”, revela Lílian.
Capela revive a fé no bairro da Barra
Igrejinha já foi alvo de bandidos, que levaram alguns objetos de valor
Entre os moradores que conhecem todas as histórias que cercam a igrejinha tá Maria Rocha Vítor, a dona Maroca, que, do alto de seus 90 anos de idade, lembra bem dos domingos em que se colocava nos trinques pra ir à capela rezar. “Eu era do apostolado da oração. Usava uma fita vermelha no pescoço”, lembra a vovozinha filha de pescadores, de olhos miúdos e cheios de luz.
Durante toda a sua vida, dona Maroca viu casamentos, batizados e velórios passarem pela igreja de Santo Amaro. Mas o fato que mais a marcou foi contado pelo marido, seu Leonel, hoje já falecido.
Ela conta que Leonel era encarregado de fechar a igreja todas as noites. Um belo dia, depois de trancar as portas, voltou pra casa mais branco que uma folha de papel. “Ele disse que começou a ouvir uns barulhos esquisitos nas paredes. Parecia que iam por a igreja abaixo. Só podia ser a visagem dos escravos que trabalharam lá”, diz a vovó.
Outro que conhece como ninguém a capelinha é o barnabé Júlio César Alexandre, 35
anos. Há 14 anos ele mora ao lado da igreja com sua família e trampa na manutenção. “Faço jardinagem, pintura, encanamento, o que precisar”, diz.
Júlio era pescador quando começou a tomar conta da capela, junto com o tio. Foi depois que bandidos invadiram a igrejinha e levaram objetos de valor, como os castiçais, que nunca mais foram recuperados, que ele ganhou o emprego e foi convidado a morar ali pra cuidar de tudo bem de perto. “É um lugar muito bonito. Pra nós é um xodó”, diz, cheio de orgulho.
Hoje, depois de um ano inteiro de restauração, a capela está novinha em folha. Ganhou de volta as antigas cores usadas pelos jesuítas: branco, amarelo e azul, e está aberta pra visitação. Quem quiser conferir esse pedacinho de história pode pintar por ali de segunda a sexta-feira, do meio-dia às 18h. Duas vezes por mês também rolam missas na igrejinha, com o padre Timóteo José Steinbach.
Texto: Dagmara Spautz
DIARINHO 05 OUTUBRO 2009
Imagen : Internet